domingo, 21 de agosto de 2016

José Saramago - falsa democracia

Jornalista, poeta, escritor e Prêmio Nobel de Literatura, José Saramago destaca suas reflexões sobre democracia
              
O governo antidemocrático que se instalou em nosso país 

completou 100 dias, na última sexta (19). 

A marionete que o representa (Michel Temer) foi vaiado na 

abertura do espetáculo mundial - as Olimpíadas 2016. 

Vergonhosamente, não estará presente, hoje,  no 

encerramento do evento. 

O mundo (a imprensa internacional) reconhece

  que houve um golpe, ao contrário da imprensa nacional 

(panfletária,  antidemocratica, corrupta, vendida), que insiste

 em chamar de "governo interino". Enquanto isso, a 

presidenta Dilma Rousseff, democraticamente eleita com 54 

milhões de votos, continua afastada.

 Os níveis de cinismo são 

imensuráveis nesse momento da história do Brasil.

Democracia!

Carinho e atenção com a palavra democracia, pois

precisamos, urgente,  resgatar seu significado

Segundo o grande filósofo chinês, Confúcio,  quando 

as palavras perdem seu significado, pessoas perdem

sua liberdade. 

A utopia é que esse seja um resgate em massa

que atinja o maior número de pessoas possível.

Saramago profetizou o momento atual vivido em nosso 

país:

"a democracia que vivemos é uma democracia sequestrada,

 condicionada, amputada, porque o poder do cidadão,

o poder de cada um de nós limita-se, na esfera política,

a tirar um governo de que não gosta para por outro, que 

talvez venha a gostar, nada mais!

Mas, as grandes decisões são tomadas numa outra

 esfera, e todos nós sabemos qual é (as grandes 

organizações financeiras internacionais, os FMIs, 

as organizações mundiais de comércio, os bancos 

mundiais, nenhum desses organismos é democrático.

E, portanto, como é que podemos continuar a falar de

democracia, se aqueles que efetivamente governam

o mundo não são eleitos democraticamente pelo povo.

Quem escolhe os representantes dos países nessas ~

organizações? O povo? 

Onde está, então, a democracia?"


José Saramago

terça-feira, 2 de agosto de 2016

Um poema para meu pai




Há duas décadas mais um ano Lourival Pereira Gama (meu

pai, nesta minha atual experiência humana) deixou o 

planeta.

Nessa manhã nublada (e fria) de 2 de agosto de 2016, um 

poema para acariciar a memória de sua existência por 72

anos na Terra.

Laços de gratidão e amor nos mantém unidos pela 

eternidade!*



Bellini e Pablo também

 Para o Alberto Lacerda



Alberto  Alberto

como os números enganam



Você completou setenta

setenta anos de vida

três vezes mais de vivências

metade no coração



                                    não diga nada já sei

você vai-me responder

                            (citando Yeats)

que o coração envelhece



mas não o seu

o seu não



O seu floresce todas as manhãs

mesmo quando o tempo é mau



e como o tempo agreste o martiriza



toca o telefone

                   é você



: já viu o tempo como está?

uma coisa pavorosa

                                           não se aguenta



mas a conversa prossegue

e o seu clima interior levanta logo

começa                   

           a resplandecer  



você nisso é singular Alberto



nisso e muitas outras coisas



o seu spaghetti com peixe

                  por exemplo



quase ninguém acredita

- o Alberto a cozinhar?  



e que gosto você põe

em fazer condimentos de alcaparras

                         você desencanta sítios para as comprar



você desencanta tudo

Victoria Square

         (um assombro)

                                                   Paris no centro de Londres



e a pia baptismal de William Blake

     e poetas que nunca foram publicados

 e as galerias de arte de Mayfair 



estou em crer que elas estão lá

só por si                                   

        para lhe agradar                              



toca o telefone                        



o telefone para nós dois 

tornou-se fundamental



trim  trim

                       é você de longe

                               Londres Boston Nova Iorque



: acabo de vir do MoMA

você não pode perder

a exposição que lá está



primeiro as suas recomendações

: vá cedo

                         não perca tempo

                 a exposição

é exigentíssima    imensa

                tem que ser vista com o maior rigor



depois vem o conversete

palavra sua                    

    hoje nossa

            interrompido por mil divagações

porque como                 

você diz

          você escreveu

                                   num poema que inspirou Octavio Paz

                                 conversar é divino



e tem razão



e às vezes você anoitece

  são nuvens         sombras

             o exílio

    tantos exílios                    



                            ninguém pode sequer imaginar               



e noutras ocasiões a gente liga

 e o telefone toca          toca      

       e você sem responder                   



: não ouvi

                                        estava a ouvir música



esclarece você depois         



e a seguir                           

                                   : espere um momento



              os seus momentos são eternidades



o auscultador pousado

  apanha um leve tossir   

 um breve passarinhar  



e de novo a sua voz



: está com paciência?

       posso ler-lhe um poema?

                          escrito no Café Picasso esta manhã? 



é claro que pode       Alberto

          você pode sempre        Alberto      

               você com essa até me faz lembrar      

         a preta Irene do Manuel Bandeira



Manuel

                       poeta querido

                                     amigo seu



tantos amigos

  tantas

                        amizades



e a nossa também        Alberto

          que vai crescendo e permanece igual

que vence fusos horários         

para dar vivas a Bellini            

                   Bellini e Pablo também



que é local     inter-urbana

e atravessa continentes

e em nome da qual pergunto



: tem paciência para ler isto?



é uma cantiga de amigo

que lhe dedica             

                         a Vinte de Setembro

o seu                         

                  mais do que amigo

                                                       irmão 
              Luís

Poema de Luís Amorim de Sousa in Bellini e Pablo também, 2007. Este poema foi escrito em antecipação da data de 20 de setembro

* Lourival Pereira Gama deixou o planeta em 1º de agosto de 1995.