quinta-feira, 30 de julho de 2015

Não tenho pressa - Alberto Caeiro


"Não tenho pressa"


"Não tenho pressa. Pressa de quê?

Não têm pressa o sol e a lua: estão certos.

Ter pressa é crer que a gente passa adiante das pernas,

Ou que, dando um pulo, salta por cima da sombra.

Não; não sei ter pressa.

Se estendo o braço, chego exatamente aonde

                                           [o meu braço chega -

Nem um centímetro mais longe.

Toco só onde toco, não aonde penso.

Só me posso sentar aonde estou.

E isto faz rir como todas as verdades absolutamente 

verdadeiras,

Mas o que faz rir a valer é que nós pensamos sempre 

noutra coisa,

E vivemos vadios da nossa realidade.

E estamos sempre fora dela porque estamos aqui."


Alberto Caeiro

O que sentimos é o que temos - Ricardo Reis



Prainha - Farol de Santa Marta - manhã de 13 de janeiro de 2015                                                                                     Foto: Vilma Gama

"O que sentimos é o que temos"



"O que sentimos é o que temos, não o que é sentido,

É o que temos.

Claro, o inverno triste

Como à sorte o acolhamos,

Haja inverno na terra, não na mente.

E, amor a amor, ou livro a livro, amemos

Nossa caveira breve."



Ricardo Reis

quarta-feira, 29 de julho de 2015

Nunca conheci quem tivesse levado porrada - Álvaro de Campos



"Nunca conheci quem tivesse levado porrada"



"Nunca conheci quem tivesse levado porrada.

Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.




E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco,tantas vezes vil,

Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,

Indesculpavelmente sujo,

Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar 

banho,

Eu que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,

Que tenho enrolado os pé publicamente nos tapetes das 

etiquetas,

Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,

Que tenho sofrido enxovalhos e calado,

Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo 

ainda;

Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,

Eu, que tenho sentido o piscar dos olhos dos moços de 

fretes,

Eu que tenho feito vergonhas financeiras, pedido 

emprestado sem pagar,

Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho 

agachado,

Para fora da possibilidade do soco;

Eu que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas 

ridículas,

Eu que verifico que não tenho par nisto neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo,

Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu um enxovalho,

Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...




Quem me dera ouvir de alguém a voz humana,

Quem confessasse não um pecado, mas uma infâmia;

Quem contasse, não uma violência, mas uma covardia!

Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.

Quem há neste largo mundo que me confesse que uma 

vez foi vil?

Ó príncipes, meus irmãos,




Arre, estou farto de semideuses!

Onde há gente no mundo?




Então só eu que é vil e errôneo nesta terra?




Poderão as mulheres não os terem amado,

Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!

E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,

Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?

Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,

Vil, no sentido mesquinho e infame da vileza."



Álvaro de Campos


terça-feira, 28 de julho de 2015

O amor é um companhia - Alberto Caeiro

                                                                                                                                 Foto: Vilma Gama

"O amor é uma companhia"


"O amor é uma companhia.

Já não sei andar só pelos caminhos,

Porque já não posso andar só,

Um pensamento visível faz-me andar mais depressa

E ver menos, e ao mesmo tempo gostar bem de ir vendo 

tudo,

Mesmo a ausência dela é uma coisa que está comigo.

E eu gosto tanto dela que não sei como a desejar.




Se a não vejo, imagino-a e sou forte como as árvores altas.

Mas se a vejo tremo, não sei o que é feito do que sinto na 

ausência dela.



Todo eu sou qualquer força que me abandona.

Toda a realidade olha para mim como

um girassol com a cara dela no meio.



Alberto Caeiro

segunda-feira, 27 de julho de 2015

Autopsicografia - Fernando Pessoa


"Autopsicografia"


"O poeta é um fingidor.

Finge tão completamente

Que chega a fingir que é dor

A dor que deveras sente.



E os que leem o que escreve,

Na dor lida sentem bem,

Não as duas que ele teve,

Mas só a que eles não têm.



E assim nas calhas de roda

Gira, a entreter a razão,


Esse comboio de corda

Que se chama coração."



Fernando Pessoa

Melhor vida é a vida que dura sem medir-se - Ricardo Reis


"Melhor vida é a vida que dura sem medir-se"


"Não quero recordar nem conhecer-me.

Somos demais se olharmos em quem somos.

Ignorar que vivemos

Cumpre bastante a vida.



Tanto quanto vivemos, vive a hora

Em que vivemos, igualmente morta

Quando passa conosco,

Que passamos com ela.



Se sabê-lo não serve de sabê-lo

(Pois sem poder que vale conhecermos?)

Melhor vida é a vida

Que dura sem medir-se."


Odes/Ricardo Reis

domingo, 26 de julho de 2015

Poema - Cazuza - Ney Matogrosso

Barco - Jorge Menezes                                                                                                                                            


Momento único, de rara beleza.
Melodia hipnótica. Texto de Cazuza interpretado, magistralmente, por Ney Matogrosso, um artista completo, que dá voz, cor, forma e alma à canção. 
Outra curiosidade: a poesia foi feita para a avó de Cazuza, quando ele tinha apenas 17 anos.



                            "Poema" 




"Eu hoje tive um pesadelo e levantei atento,

a tempo

Eu acordei com medo e procurei no escuro alguém com seu

carinho

e lembrei de um tempo.

Porque o passado me traz uma lembrança do tempo que 

eu era criança 

e o medo era motivo de choro, desculpa pra um abraço ou 

um consolo

Hoje eu acordei com medo, mas não chorei, nem reclamei

abrigo

Do escuro eu via o infinito sem presente, passado ou futuro

Senti um abraço forte, já não era medo, era uma coisa sua

que ficou em mim (que não tem fim)

De repente a gente vê que perdeu ou está perdendo alguma

coisa

morna e ingênua, que vai ficando no caminho

que é escuro e frio, mas também bonito,

porque é iluminado

pela beleza do que aconteceu há minutos atrás."



    Cazuza*
                                        





Cazuza

* Cazuza nasceu no Rio de Janeiro em  4 de abril de 1958 e faleceu, na mesma cidade, em 7 de julho de 1990.