Há duas décadas mais um ano Lourival Pereira Gama (meu
pai, nesta minha atual experiência humana) deixou o
planeta.
Nessa manhã nublada (e fria) de 2 de agosto de 2016, um
poema para acariciar a memória de sua existência por 72
anos na Terra.
Laços de gratidão e amor nos mantém unidos pela
eternidade!*
Bellini e Pablo também
Para o Alberto Lacerda
Alberto Alberto
como os números enganam
Você completou setenta
setenta anos de vida
três vezes mais de vivências
metade no coração
não diga nada já sei
você vai-me responder
(citando Yeats)
que o coração envelhece
mas não o seu
o seu não
O seu floresce todas as manhãs
mesmo quando o tempo é mau
e como o tempo agreste o martiriza
toca o telefone
é você
: já viu o tempo como está?
uma coisa pavorosa
não se aguenta
mas a conversa prossegue
e o seu clima interior levanta logo
começa
a resplandecer
você nisso é singular Alberto
nisso e muitas outras coisas
o seu spaghetti com peixe
por exemplo
quase ninguém acredita
- o Alberto a cozinhar?
e que gosto você põe
em fazer condimentos de alcaparras
você desencanta sítios para as comprar
você desencanta tudo
Victoria Square
(um assombro)
Paris no centro de Londres
e a pia baptismal de William Blake
e poetas que nunca foram publicados
e as galerias de arte de Mayfair
estou em crer que elas estão lá
só por si
para lhe agradar
toca o telefone
o telefone para nós dois
tornou-se fundamental
trim trim
é você de longe
Londres Boston Nova Iorque
: acabo de vir do MoMA
você não pode perder
a exposição que lá está
primeiro as suas recomendações
: vá cedo
não perca tempo
a exposição
é exigentíssima imensa
tem que ser vista com o maior rigor
depois vem o conversete
palavra sua
hoje nossa
interrompido por mil divagações
porque como
você diz
você escreveu
num poema que inspirou Octavio Paz
conversar é divino
e tem razão
e às vezes você anoitece
são nuvens sombras
o exílio
tantos exílios
ninguém pode sequer imaginar
e noutras ocasiões a gente liga
e o telefone toca toca
e você sem responder
: não ouvi
estava a ouvir música
esclarece você depois
e a seguir
: espere um momento
os seus momentos são eternidades
o auscultador pousado
apanha um leve tossir
um breve passarinhar
e de novo a sua voz
: está com paciência?
posso ler-lhe um poema?
escrito no Café Picasso esta manhã?
é claro que pode Alberto
você pode sempre Alberto
você com essa até me faz lembrar
a preta Irene do Manuel Bandeira
Manuel
poeta querido
amigo seu
tantos amigos
tantas
amizades
e a nossa também Alberto
que vai crescendo e permanece igual
que vence fusos horários
para dar vivas a Bellini
Bellini e Pablo também
que é local inter-urbana
e atravessa continentes
e em nome da qual pergunto
: tem paciência para ler isto?
é uma cantiga de amigo
que lhe dedica
a Vinte de Setembro
o seu
mais do que amigo
irmão
Luís
Poema de Luís Amorim de Sousa in Bellini e Pablo também, 2007. Este poema foi escrito em antecipação da data de 20 de setembro
* Lourival Pereira Gama deixou o planeta em 1º de agosto de 1995.