domingo, 29 de maio de 2016

Tarde de maio - Carlos Drummond de Andrade

Pavão no Parque da Água Branca                                                                                                                          Foto: Vilma Gama

Tarde de Maio



Como esses primitivos que carregam por toda parte o

maxilar inferior de seus mortos,

assim te levo comigo, tarde de maio,

quando, ao rubor dos incêndios que consumiam a terra,

outra chama, não perceptível, tão mais devastadora,

surdamente lavrava sob meus traços cômicos,

e uma a uma, disjecta membra, deixava ainda palpitantes

e condenadas, no solo ardente, porções de minh'alma

nunca antes nem nunca mais aferidas em sua nobreza

sem fruto.



Mas os primitivos imploram à relíquia saúde e chuva,

colheita, fim do inimigo, não sei que portentos.

Eu nada peço a ti, tarde de maio,



senão que continues, no tempo e fora dele, irreversível,

sinal de derrota que se vai consumindo a ponto de

converter-se em sinal de beleza no rosto de alguém

que, precisamente, volve o rosto e passa...

Outono é a estação em que ocorrem tais crises,

e em maio, tantas vezes, morremos.




Para renascer, eu sei, numa fictícia primavera,

já então espectrais sob o aveludado da casca,


trazendo na sombra a aderência das resinas fúnebres

com que nos ungiram, e nas vestes a poeira do carro

fúnebre, tarde de maio, em que desaparecemos,

sem que ninguém, o amor inclusive, pusesse reparo.


E os que o vissem não saberiam dizer: se era um préstito

lutuoso, arrastado, poeirento, ou um desfile carnavalesco.

Nem houve testemunha.


Nunca há testemunhas. Há desatentos. Curiosos, muitos.

Quem reconhece o drama, quando se precipita, sem 

máscara? 

Se morro de amor, todos o ignoram

e negam. O próprio amor se desconhece e maltrata.

O próprio amor se esconde, ao jeito dos bichos caçados;

não está certo de ser amor, há tanto lavou a memória

das impurezas de barro e folha em que repousava. E resta,

perdida no ar, por que melhor se conserve,

uma particular tristeza, a imprimir seu selo nas nuvens."


Carlos Drummond de Andrade 


Um abraço para Manoel - Mia Couto



                                                                                              Fevereiro de 2008 (Foto: Jonne Roriz / Estadão Conteúdo/Arquivo)



"Um abraço para Manoel"


"Dizem que entre nós

há oceanos e terras com peso de distância.

Talvez. Quem sabe de certezas não é o poeta.

O mundo que é nosso

é sempre tão pequeno e tão infindo

que só cabe em olhar de menino.


Contra essa distância

tu me deste uma sabedora desgeografia

e engravidando palavra africana

tornei-me tão vizinho

que ganhei intimidades

com a barriga do teu chão brasileiro.


E é sempre o mesmo chão,

a mesma poeira nos versos,

a mesma peneira separando os grãos,

a mesma infância nos devolvendo a palavra

a mesma palavra devolvendo a infância.


E assim,

sem lonjura,

na mesma água

riscaremos a palavra

que incendeia a nuvem."


Mia Couto
Professor, biólogo, poeta e escritor moçambicano

sábado, 28 de maio de 2016

Poema inédito de Manoel de Barros




Ele é considerado o maior poeta do século XX por nada

 mais, nada menos, que Carlos Drummond de Andrade e 

em 19 de dezembro será comemorado o centenário de seu 

nascimento. 

A escola de samba Império Serrano o homenageará com o

 enredo "Meu quintal é maior que o mundo", o título é 

inspirado em um verso do poema "O apanhador de 

desperdícios".



E agora um poema inédito para iniciarmos as comemorações poéticas do em breve centenário Manoel de Barros


"Fôssemos merecidos de água, de chão, de rãs, de árvores,

 de brisas e de graças!

Nossas palavras não tinham lugar marcado. A gente 

andava atoamente em nossas origens.

Só as pedras sabiam o formato do silêncio. A gente não 

queria significar, mas só cantar.

A gente só queria demais era mudar as feições da natureza. 

Tipo assim: Hoje eu vi um lagarto lamber as pernas da 

manhã. Ou tipo assim: Nós vimos uma formiga frondosa 

ajoelhada na pedra.

Aliás, depois de grandes a gente viu que o cu de uma 

formiga é mais importante para a humanidade do que a 

Bomba Atômica."


Manoel de Barros*

*Revista Cult Leia poema inédito de Manoel de Barros - Revista Cult: Poeta matogrossense, de 96 anos de idade, foi condecorado em Lisboa com o Prêmio Casa da América Latina

sexta-feira, 20 de maio de 2016

Receita da escritora Viviane Mosé para lavar palavra suja

Horta - Praça das Corujas                                                                                          Foto: Vilma Gama

Carinho e atenção com a palavra

democracia,

pois precisamos, urgente, resgatar seu significado

Segundo o grande filósofo chinês Confúcio, quando as

 palavras perdem seu significado,  pessoas perdem sua

 liberdade.

A utopia é que esse seja um resgate  em massa, 

que atinja

 o maior número de pessoas possível. 

A escritora Viviane Mosé nos inspira com sua receita de 

como lavar palavra suja.



terça-feira, 17 de maio de 2016

O Direito ao Delírio - Eduardo Galeano (1940/2015)



O escritor uruguaio Eduardo Galeano nos brinda 

poeticamente com El Derecho al Delirio.

Encantadoramente fala da utopia e de sua utilidade. 

Na sequência celebra o nosso direito ao delírio. O texto é 

atual e pertinente ao momento em que vivemos em nosso

 país.

segunda-feira, 18 de abril de 2016

Importante cultuar o significado da palavra Democracia - Confúcio




"Quando as palavras perdem o seu 

significado,

pessoas perdem a sua liberdade."


Confúcio*




Sempre é um momento propício ao culto do significado das 

palavras. 

Somos convocados pelo Dizeres Poéticos a


 refletir.

Diante do golpe sofrido pela Democracia, após a aprovação,

 pelo Congresso Nacional, na noite de 

ontem (17 de abril), do processo de impeachment contra uma 

presidente democraticamente eleita. 

O que isso significa?

Significa que os votos de 52 

milhões de cidadãos brasileiros foram jogados 

na lata do lixo.

Isso tudo só foi possível pois o significado da palavra 

democracia foi esvaziado.


Somos presas fáceis de uma mídia escancaradamente 


panfletária, que manipula e molda o pensamento das 


pessoas desavisadas.


Ao longo de 21 anos de ditadura militar o plano de sucatear 


a escola pública foi finalizado. Hoje ela forma analfabetos 


funcionais, presas fáceis do bombardeio de ideias 


tendenciosas, vendidas como se fossem verdades 


universais 


e imparciais. 





O resgate do significado da palavra democracia é urgente!






*Confúcio é considerado o mais importante filósofo chinês. Viveu de 551 a.C. a 479 a.C.

quarta-feira, 6 de abril de 2016

Vaidade

      Laguna-SC                                                                                                                                                     Foto: Américo Rodrigues

"Vaidade"


Sonho que sou a Poetisa eleita,
Aquela que diz tudo e tudo sabe,
Que tem a inspiração pura e perfeita,
Que reúne num verso a imensidade!

Sonho que um verso meu tem claridade
Para encher todo o mundo! E que deleita
Mesmo aqueles que morrem de saudade!
Mesmo os de alma profunda e insatisfeita!

Sonho que sou Alguém cá neste mundo ...
Aquela de saber vasto e profundo,
Aos pés de quem a Terra anda curvada!

E quando mais no céu eu vou sonhando,
E quando mais no alto ando voando,
Acordo do meu sonho ... E não sou nada! ...*


                                             Florbela Espanca


*Florbela Espanca, in "Livro de Mágoas"