sábado, 28 de fevereiro de 2015

Poema para o final de tarde de um dia chuvoso

Farol de Santa Marta - SC                                                                                                                                          Foto: Vilma Gama

"Deste modo ou daquele modo,

Conforme calha ou não calha.

Podendo às vezes dizer o que penso

E outras vezes dizendo-o mal e com misturas

Vou escrevendo os meus versos sem querer,

Como se escrever não fosse uma cousa feita de gestos,

Como se escrever fosse uma cousa que me acontecesse

Como dar-me o sol de fora.


Procuro dizer o que sinto

Sem pensar em que o sinto.

Procuro encostar as palavras à ideia

E não precisar dum corredor

Do pensamento para as palavras.


Nem sempre consigo sentir o que sei que devo sentir.

O meu pensamento só muito devagar atravessa o rio a 

nado 

Porque lhe pesa o fato que os homens o fizeram usar.


Procuro despir-me do que aprendi,

Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me 

ensinaram,

E raspar a tinta com que me pintaram os sentidos,

Desencaixotar as minhas emoções verdadeiras,

Desembrulhar-me e ser eu, não Alberto Caeiro,

Mas um animal humano que a Natureza produziu.


E assim escrevo, querendo sentir a Natureza, nem sequer 

como um homem,

Mas como quem sente a Natureza, e mais nada.

E assim escrevo, ora bem, ora mal,

Ora acertando com o que quero dizer, ora errando,

Caindo aqui, levantando-me acolá,

Mas indo sempre no meu caminho como um cego teimoso.


Ainda assim, sou alguém.

Sou o Descobridor da Natureza.

Sou o Argonauta das sensações verdadeiras.

Trago ao Universo um novo Universo

Porque trago ao Universo ele próprio.


Isto sinto e isto escrevo

Perfeitamente sabedor e sem que não veja

Que são cinco horas do amanhecer

E que o sol, que ainda não mostrou a cabeça

Por cima do muro do horizonte,

Ainda assim já se lhe veem as pontas dos dedos

Agarrando o cimo do muro

Do horizonte cheio de montes baixos."



                                        Alberto Caeiro 

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

A poesia de Alberto Caeiro. Flores sentem? Pedras têm alma?

Vegetação nativa - Farol de Santa Marta - SC                                                                                                                Foto: Vilma Gama


"Li hoje quase duas páginas


Do livro dum poeta místico,

E ri como quem tem chorado muito.


Os poetas místicos são filósofos doentes,

E os filósofos são homens doidos.


Porque os poetas místicos dizem que as flores sentem

E dizem que as pedras têm alma

E que os rios têm êxtases ao luar.


Mas as flores, se sentissem, não eram flores,

Eram gente;

E se as pedras tivessem alma, eram cousas vivas, não eram

pedras;

E se os rios tivessem êxtases ao luar,

Os rios seriam homens doentes.


É preciso não saber o que são flores e pedras e rios

Para falar dos sentimentos deles.

Falar da alma das pedras, das flores, dos rios,

É falar de si próprio e dos seus falsos pensamentos.

Graças a Deus que as pedras são só pedras, 

E que os rios não são senão rios,

E que as flores são apenas flores.


Por mim, escrevo a prosa dos meus versos

E fico contente,

Porque sei que compreendo a natureza por fora;

E não a compreendo por dentro

Porque a Natureza não tem dentro;

Senão não era a Natureza."

                                         Alberto Caeiro

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

Um dia de calor

Prainha e Praia Grande (no horizonte) -           Farol de Santa Marta - verão 2015                                                    Foto: Vilma Gama
"Sou um guardador de rebanhos,

O rebanho é os meus pensamentos

E os meus pensamentos são todos sensações.

Penso com os olhos e com os ouvidos

E com as mãos e os pés

E com o nariz e a boca.



Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la

E comer um fruto é saber-lhe o sentido.


Por isso quando num dia de calor

Me sinto triste de gozá-lo tanto,

E me deito ao comprido na erva,

E fecho os olhos quentes,

Sinto  todo o meu corpo deitado na realidade,

Sei a verdade e sou feliz."


                                                                Alberto Caeiro

terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

Mar e montanha

                                                                                                       Farol de Santa Marta - 18 de janeiro de 2015 - Foto: Vilma Gama
"Se eu pudesse trincar a terra toda

E sentir-lhe um paladar,

Seria mais feliz um momento...

Mas eu nem sempre quero ser feliz.

É preciso ser de vez em quando infeliz

Para se poder ser natural...

Por isso tomo a infelicidade com a felicidade

Naturalmente, como quem não estranha

Que haja montanhas e planícies

E que haja rochedos e erva..."

                                            Alberto Caeiro (heterônimo de Fernando Pessoa)


segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

Oração indígena do silêncio

                                                                                                                               Prainha - Farol de Santa Marta - Foto: Vilma Gama

A oração indígena do silêncio:

"Sente-se à beira do amanhecer, o sol nascerá para você.

Sente-se à beira da noite, as estrelas brilham para você.

Sente-se à beira do rio, o rouxinol canta para você.

Sente-se à beira do silêncio, Deus vai falar com você."

(Avagana Daçui-rá) 






domingo, 22 de fevereiro de 2015

Mar, imensidão azul

                                                                                                                                       Farol de Santa Marta - SC - Foto: Vilma Gama

Diante da imensidão azul do oceano atlântico, no lindo litoral catarinense, pensei em Fernando Pessoa.


"Mar Português"

"Ó mar salgado, quando do teu sal

São lágrimas de Portugal!

Por te cruzarmos, quantas mães choraram,

Quantos filhos em vão rezaram!

Quantas noivas ficaram por casar

Para que fosses nosso, ó mar!


Valeu a pena? Tudo vale a pena

Se a alma não é pequena.

Quem quer passar além do Bojador

Tem que passar além da dor.

Deus ao mar o perigo e abismo deu,

Mas nele é que espelhou o céu."

sábado, 21 de fevereiro de 2015

Sinta o gosto do sal, do sal, do sal...

                                                                                                              Praia do Cardoso - Farol de Santa Marta - Foto: Vilma Gama
Caros amigos e leitores o blog Dizeres Poéticos retorna ao ar depois de um mês e meio sem publicações. Cabulei algumas aulas, mas voltei.
E para marcar o retorno "Milágrimas", música de Itamar Assumpção, poesia de Alice Ruiz e vozes de Anelis Assumpção e Alice Ruiz. 

                      
Milágrimas

"Em caso de dor ponha gelo


Mude o corte do cabelo

Mude como modelo

Vá ao cinema dê um sorriso


Ainda que amarelo, esqueça seu cotovelo


Se amargo foi já ter sido


Troque já esse vestido


Troque o padrão do tecido


Saia do sério deixe os critérios


Siga todos os sentidos


Faça fazer sentido


A cada mil lágrimas sai um milagre


Em caso de tristeza vire a mesa

Coma só a sobremesa coma somente a cereja


Jogue para cima faça cena


Cante as rimas de um poema


Sofra penas viva apenas


Sendo só fissura ou loucura


Quem sabe casando cura


Ninguém sabe o que procura


Faça uma novena reze um terço


Caia fora do contexto invente seu endereço


A cada mil lágrimas sai um milagre


Mas se apesar de banal

Chorar for inevitável


Sinta o gosto do sal do sal do sal


Sinta o gosto do sal


Gota a gota, uma a uma


Duas três dez cem mil lágrimas sinta o milagre


A cada mil lágrimas sai um milagre"