quarta-feira, 4 de março de 2015

Poderoso Manoel de Barros

Carpa - Parque da Água Branca                                                                                                                             Foto: Vilma Gama

No meio líquido, as enormidades poéticas de Manoel de Barros...



"Tratado geral das grandezas do ínfimo"



"A poesia está guardada nas palavras - é tudo que eu sei.

Meu fado é o de não saber quase tudo.

Sobre o nada eu tenho profundidades.

Carpas                                                                                                                                                                         Foto: Vilma Gama
Não tenho conexões com a realidade.

Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro.

Para mim poderoso é aquele que descobre as 

insignificâncias (do mundo e as nossas).

Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil.

Fiquei emocionado.

Sou fraco para elogios."


Coloridas                                                                                                                                                                     Foto: Vilma Gama

segunda-feira, 2 de março de 2015

Jorge Luís Borges - poema para pessoas de rara beleza

Horizonte, beleza rara. - Farol de Santa Marta                                                                                                                  Foto: Vilma Gama
                               
  "Os Justos"



"Um homem que cultiva o seu jardim, como queria Voltaire.


 
O que agradece que na terra haja música. 



O que descobre com prazer uma etimologia. 



Dois empregados que num café do Sul jogam um silencioso 


xadrez. 


O ceramista que premedita uma cor e uma forma. 



O tipógrafo que compõe bem esta página, que talvez 


não lhe agrade. 

Uma mulher e um homem que lêem os tercetos finais de 

certo canto. 


O que acarinha um animal adormecido.


 
O que justifica ou quer justificar um mal que lhe fizeram.


 
O que agradece que na terra haja Stevenson. 



O que prefere que os outros tenham razão. 



Essas pessoas, que se ignoram, estão a salvar o mundo."


 
Jorge Luis Borges, in "A Cifra" 

Tradução de Fernando Pinto do Amaral 

domingo, 1 de março de 2015

Inexplicável quantidade de céu

Prainha - Farol de Santa Marta - inexplicável a quantidade de céu                                                                                Foto: Vilma Gama

A inexplicável quantidade de céu registrada na foto dá o tom da poesia.


"Atravessa esta paisagem o meu sonho dum porto infinito

E a cor das flores é transparente de as velas de grandes 

navios

Que largam do cais arrastando nas águas por sombra

Os vultos ao sol daquelas árvores antigas..."

Fragmento do poema "Chuva oblíqua" de Fernando Pessoa

sábado, 28 de fevereiro de 2015

Poema para o final de tarde de um dia chuvoso

Farol de Santa Marta - SC                                                                                                                                          Foto: Vilma Gama

"Deste modo ou daquele modo,

Conforme calha ou não calha.

Podendo às vezes dizer o que penso

E outras vezes dizendo-o mal e com misturas

Vou escrevendo os meus versos sem querer,

Como se escrever não fosse uma cousa feita de gestos,

Como se escrever fosse uma cousa que me acontecesse

Como dar-me o sol de fora.


Procuro dizer o que sinto

Sem pensar em que o sinto.

Procuro encostar as palavras à ideia

E não precisar dum corredor

Do pensamento para as palavras.


Nem sempre consigo sentir o que sei que devo sentir.

O meu pensamento só muito devagar atravessa o rio a 

nado 

Porque lhe pesa o fato que os homens o fizeram usar.


Procuro despir-me do que aprendi,

Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me 

ensinaram,

E raspar a tinta com que me pintaram os sentidos,

Desencaixotar as minhas emoções verdadeiras,

Desembrulhar-me e ser eu, não Alberto Caeiro,

Mas um animal humano que a Natureza produziu.


E assim escrevo, querendo sentir a Natureza, nem sequer 

como um homem,

Mas como quem sente a Natureza, e mais nada.

E assim escrevo, ora bem, ora mal,

Ora acertando com o que quero dizer, ora errando,

Caindo aqui, levantando-me acolá,

Mas indo sempre no meu caminho como um cego teimoso.


Ainda assim, sou alguém.

Sou o Descobridor da Natureza.

Sou o Argonauta das sensações verdadeiras.

Trago ao Universo um novo Universo

Porque trago ao Universo ele próprio.


Isto sinto e isto escrevo

Perfeitamente sabedor e sem que não veja

Que são cinco horas do amanhecer

E que o sol, que ainda não mostrou a cabeça

Por cima do muro do horizonte,

Ainda assim já se lhe veem as pontas dos dedos

Agarrando o cimo do muro

Do horizonte cheio de montes baixos."



                                        Alberto Caeiro 

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

A poesia de Alberto Caeiro. Flores sentem? Pedras têm alma?

Vegetação nativa - Farol de Santa Marta - SC                                                                                                                Foto: Vilma Gama


"Li hoje quase duas páginas


Do livro dum poeta místico,

E ri como quem tem chorado muito.


Os poetas místicos são filósofos doentes,

E os filósofos são homens doidos.


Porque os poetas místicos dizem que as flores sentem

E dizem que as pedras têm alma

E que os rios têm êxtases ao luar.


Mas as flores, se sentissem, não eram flores,

Eram gente;

E se as pedras tivessem alma, eram cousas vivas, não eram

pedras;

E se os rios tivessem êxtases ao luar,

Os rios seriam homens doentes.


É preciso não saber o que são flores e pedras e rios

Para falar dos sentimentos deles.

Falar da alma das pedras, das flores, dos rios,

É falar de si próprio e dos seus falsos pensamentos.

Graças a Deus que as pedras são só pedras, 

E que os rios não são senão rios,

E que as flores são apenas flores.


Por mim, escrevo a prosa dos meus versos

E fico contente,

Porque sei que compreendo a natureza por fora;

E não a compreendo por dentro

Porque a Natureza não tem dentro;

Senão não era a Natureza."

                                         Alberto Caeiro

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

Um dia de calor

Prainha e Praia Grande (no horizonte) -           Farol de Santa Marta - verão 2015                                                    Foto: Vilma Gama
"Sou um guardador de rebanhos,

O rebanho é os meus pensamentos

E os meus pensamentos são todos sensações.

Penso com os olhos e com os ouvidos

E com as mãos e os pés

E com o nariz e a boca.



Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la

E comer um fruto é saber-lhe o sentido.


Por isso quando num dia de calor

Me sinto triste de gozá-lo tanto,

E me deito ao comprido na erva,

E fecho os olhos quentes,

Sinto  todo o meu corpo deitado na realidade,

Sei a verdade e sou feliz."


                                                                Alberto Caeiro

terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

Mar e montanha

                                                                                                       Farol de Santa Marta - 18 de janeiro de 2015 - Foto: Vilma Gama
"Se eu pudesse trincar a terra toda

E sentir-lhe um paladar,

Seria mais feliz um momento...

Mas eu nem sempre quero ser feliz.

É preciso ser de vez em quando infeliz

Para se poder ser natural...

Por isso tomo a infelicidade com a felicidade

Naturalmente, como quem não estranha

Que haja montanhas e planícies

E que haja rochedos e erva..."

                                            Alberto Caeiro (heterônimo de Fernando Pessoa)