sábado, 7 de março de 2015

Navios naufragados e garrafas ao mar

Quase pôr-do-sol na praia do Cardoso - Farol de Santa Marta - SC                                                                   Foto: Vilma Gama





Muito boas-vindas ao amigo e poeta Sérgio Rocha. 
A encantadora poesia que o apresenta fala por si.



"Asfixia"



"Então fico a ver navios naufragados

tão mais velozmente 


que os meus sentidos consigam buscar num sumiço de 



horizonte distante

(arregalo olhos de solidão e calo diante do imenso fosso

 esverdeado).

Semblantes pouco críveis 

desesperançados de rugas e sonhos em pedaços

 acumulam-se ao meu lado também fixados na profundidade

 que se alarga e esgarça mais e mais o sentido que 

dávamos às estórias antes dessa precipitação.

Precipito-me encarando o próprio Poseidon e seus amores 

em descalabro e só depois de arrancado da areia e 

arremessado de volta à realidade é que percebo Cila e 

Caribdes abocanhando das pedras os poucos e tristes 

pescadores de almas.

Esqueço a luz adormecida com a tarde 

viro-me deixando o livro empoeirado cair no piso de tacos tão

 velhos como sonoros e na linha tu insistes em perguntar 

por que durmo tanto o dia todo e tudo o que digo é que só 

assim lanço garrafas ao mar 

só assim pressinto o que de mim se afoga na falta de ar que

 do outro lado respiras."

                                                                                      Sérgio Rocha


quinta-feira, 5 de março de 2015

Aniversário de cinco meses do blog - Manoel de Barros

Uma imagem vale mais do que mil palavras                                                                                                                                          

Em comemoração aos cinco meses de existência do Dizeres Poéticos reverenciamos uma figura, que segundo Drummond foi o grande poeta do século XX. Do Pantanal para o mundo, Manoel de Barros.


"Prefácio"


"Assim é que elas foram feitas (todas as coisas) -



sem nome.



Depois é que veio a harpa e a fêmea em pé.



Insetos errados de cor caíam no mar.



A voz se estendeu na direção da boca.



Caranguejos apertavam mangues.



Vendo que havia na terra



Dependimentos demais



E tarefas muitas -



Os homens começaram a roer unhas.



Ficou certo pois não



Que as moscas iriam iluminar



O silêncio das coisas anônimas.



Porém, vendo o Homem



Que as moscas não davam conta de iluminar o 



Silêncio das coisas anônimas -


Passaram essa tarefa para os poetas."



                                       Manoel de Barros

quarta-feira, 4 de março de 2015

Poderoso Manoel de Barros

Carpa - Parque da Água Branca                                                                                                                             Foto: Vilma Gama

No meio líquido, as enormidades poéticas de Manoel de Barros...



"Tratado geral das grandezas do ínfimo"



"A poesia está guardada nas palavras - é tudo que eu sei.

Meu fado é o de não saber quase tudo.

Sobre o nada eu tenho profundidades.

Carpas                                                                                                                                                                         Foto: Vilma Gama
Não tenho conexões com a realidade.

Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro.

Para mim poderoso é aquele que descobre as 

insignificâncias (do mundo e as nossas).

Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil.

Fiquei emocionado.

Sou fraco para elogios."


Coloridas                                                                                                                                                                     Foto: Vilma Gama

segunda-feira, 2 de março de 2015

Jorge Luís Borges - poema para pessoas de rara beleza

Horizonte, beleza rara. - Farol de Santa Marta                                                                                                                  Foto: Vilma Gama
                               
  "Os Justos"



"Um homem que cultiva o seu jardim, como queria Voltaire.


 
O que agradece que na terra haja música. 



O que descobre com prazer uma etimologia. 



Dois empregados que num café do Sul jogam um silencioso 


xadrez. 


O ceramista que premedita uma cor e uma forma. 



O tipógrafo que compõe bem esta página, que talvez 


não lhe agrade. 

Uma mulher e um homem que lêem os tercetos finais de 

certo canto. 


O que acarinha um animal adormecido.


 
O que justifica ou quer justificar um mal que lhe fizeram.


 
O que agradece que na terra haja Stevenson. 



O que prefere que os outros tenham razão. 



Essas pessoas, que se ignoram, estão a salvar o mundo."


 
Jorge Luis Borges, in "A Cifra" 

Tradução de Fernando Pinto do Amaral 

domingo, 1 de março de 2015

Inexplicável quantidade de céu

Prainha - Farol de Santa Marta - inexplicável a quantidade de céu                                                                                Foto: Vilma Gama

A inexplicável quantidade de céu registrada na foto dá o tom da poesia.


"Atravessa esta paisagem o meu sonho dum porto infinito

E a cor das flores é transparente de as velas de grandes 

navios

Que largam do cais arrastando nas águas por sombra

Os vultos ao sol daquelas árvores antigas..."

Fragmento do poema "Chuva oblíqua" de Fernando Pessoa

sábado, 28 de fevereiro de 2015

Poema para o final de tarde de um dia chuvoso

Farol de Santa Marta - SC                                                                                                                                          Foto: Vilma Gama

"Deste modo ou daquele modo,

Conforme calha ou não calha.

Podendo às vezes dizer o que penso

E outras vezes dizendo-o mal e com misturas

Vou escrevendo os meus versos sem querer,

Como se escrever não fosse uma cousa feita de gestos,

Como se escrever fosse uma cousa que me acontecesse

Como dar-me o sol de fora.


Procuro dizer o que sinto

Sem pensar em que o sinto.

Procuro encostar as palavras à ideia

E não precisar dum corredor

Do pensamento para as palavras.


Nem sempre consigo sentir o que sei que devo sentir.

O meu pensamento só muito devagar atravessa o rio a 

nado 

Porque lhe pesa o fato que os homens o fizeram usar.


Procuro despir-me do que aprendi,

Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me 

ensinaram,

E raspar a tinta com que me pintaram os sentidos,

Desencaixotar as minhas emoções verdadeiras,

Desembrulhar-me e ser eu, não Alberto Caeiro,

Mas um animal humano que a Natureza produziu.


E assim escrevo, querendo sentir a Natureza, nem sequer 

como um homem,

Mas como quem sente a Natureza, e mais nada.

E assim escrevo, ora bem, ora mal,

Ora acertando com o que quero dizer, ora errando,

Caindo aqui, levantando-me acolá,

Mas indo sempre no meu caminho como um cego teimoso.


Ainda assim, sou alguém.

Sou o Descobridor da Natureza.

Sou o Argonauta das sensações verdadeiras.

Trago ao Universo um novo Universo

Porque trago ao Universo ele próprio.


Isto sinto e isto escrevo

Perfeitamente sabedor e sem que não veja

Que são cinco horas do amanhecer

E que o sol, que ainda não mostrou a cabeça

Por cima do muro do horizonte,

Ainda assim já se lhe veem as pontas dos dedos

Agarrando o cimo do muro

Do horizonte cheio de montes baixos."



                                        Alberto Caeiro 

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

A poesia de Alberto Caeiro. Flores sentem? Pedras têm alma?

Vegetação nativa - Farol de Santa Marta - SC                                                                                                                Foto: Vilma Gama


"Li hoje quase duas páginas


Do livro dum poeta místico,

E ri como quem tem chorado muito.


Os poetas místicos são filósofos doentes,

E os filósofos são homens doidos.


Porque os poetas místicos dizem que as flores sentem

E dizem que as pedras têm alma

E que os rios têm êxtases ao luar.


Mas as flores, se sentissem, não eram flores,

Eram gente;

E se as pedras tivessem alma, eram cousas vivas, não eram

pedras;

E se os rios tivessem êxtases ao luar,

Os rios seriam homens doentes.


É preciso não saber o que são flores e pedras e rios

Para falar dos sentimentos deles.

Falar da alma das pedras, das flores, dos rios,

É falar de si próprio e dos seus falsos pensamentos.

Graças a Deus que as pedras são só pedras, 

E que os rios não são senão rios,

E que as flores são apenas flores.


Por mim, escrevo a prosa dos meus versos

E fico contente,

Porque sei que compreendo a natureza por fora;

E não a compreendo por dentro

Porque a Natureza não tem dentro;

Senão não era a Natureza."

                                         Alberto Caeiro