terça-feira, 18 de agosto de 2015

Seiscentos e Sessenta e Seis - Mário Quintana

Prainha - Farol de Santa Marta - SC                                                                                                                        Foto: Américo Rodrigues

"Seiscentos e Sessenta e seis"



"A vida é uns deveres que nós trouxemos para fazer em casa.

Quando se vê, já são seis horas: há tempo...

Quando se vê, já é sexta-feira...

Quando se vê, passaram 60 anos...

Agora, é tarde demais para ser reprovado...

E se me dessem - um dia - outra oportunidade,

eu nem olhava o relógio

seguia sempre, sempre em frente...


E iria jogando pelo caminho a casca dourada e inútil das horas."







Mário Quintana

segunda-feira, 17 de agosto de 2015

As mãos de meu pai - Mário Quintana

                                                                                                                                                                                      Foto: Vilma Gama

Há um tempo não publico nada por aqui. 
Há um tempo não muito distante meu pai deixou este planeta. 
Há uma semana e meia o blog completou 10 meses. 
E a roda viva do tempo não para.


"As mãos de meu pai"



"As tuas mãos tem grossas veias como cordas azuis

sobre um fundo de manchas já da cor da terra

- como são belas as tuas mãos

pelo quanto lidaram, acariciaram ou fremiram da nobre 

cólera dos justos...

Porque há nas tuas mãos, meu velho pai, essa beleza que 

se chama simplesmente vida.

E, ao entardecer, quando elas repousam nos braços da tua 

cadeira predileta,

uma luz parece vir de dentro delas...

Virá dessa chama que pouco a pouco, longamente, vieste 

alimentando na terrível solidão do mundo,

como quem junta uns gravetos e tenta acendê-los contra o 

vento?

Ah, como os fizeste arder, fulgir, com o milagre das tuas

mãos!

E é, ainda, a vida que transfigura as tuas mãos nodosas...

essa chama de vida - que transcende a própria vida...

e que os Anjos, um dia, chamarão de alma."



Mário Quintana


*Poema publicado originalmente no livro Esconderijo do Tempo, retirado de Poesia Completa - Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2005, p. 491)

sexta-feira, 31 de julho de 2015

Ah! Os relógios - Mário Quintana


Ontem, 30 de julho, se estivesse aqui pelo planeta, Mário Quintana completaria 109 anos.
Em homenagem ao adorável poeta o blog publica hoje os poemas “Ah! Os relógios” – “Relógio” – que tratam do tempo;  e ainda, “Sesta antiga”  - “Canção da garoa” – “Os arroios” – “Os Poemas” – que falam por si. 
Boa leitura! 
Viva Quintana!




"Ah! Os relógios"


"Amigos, não consultem os relógios

quando um dia eu me for de vossas vidas

em seus fúteis problemas tão perdidas

que até parecem mais uns necrológios...



Porque o tempo é um invenção da morte:

não o conhece a vida - a verdadeira -

em que basta um momento de poesia

para nos dar a eternidade inteira.



Inteira, sim, porque essa vida eterna

somente por si mesma é dividida:

não cabe, a cada qual, uma porção.



E os Anjos entreolham-se espantados

quando alguém - ao voltar a si da vida -

acaso lhes indaga que horas são..."


Gonzaguinha e Mário Quintana

Relógio - Mário Quintana




"Relógio"



"O mais feroz dos animais domésticos

é o relógio de parede:

conheço um que já devorou

três gerações da minha família."



Mário Quintana

Sesta antiga e Canção da garoa - Mário Quintana


  

"Sesta antiga"


"A ruazinha lagarteando ao sol.

O coreto de música deserto

Aumenta ainda mais o silêncio.

Nem um cachorro.

Este poeminho

É só o que acontece no mundo..."


Mário Quintana


Os arroios - Mário Quintana


"Os arroios"


"Os arroios são rios guris...

Vão pulando e cantando dentre as pedras.

Fazem borbulhas d'água no caminho: bonito!

Dão vau aos burricos,

às belas morenas,

curiosos das pernas das belas morenas.

E às vezes vão tão devagar

que conhecem o cheiro e a cor das flores

que se debruçam sobre eles nos matos que atravessam

e onde parece quererem sestear.

Às vezes uma asa branca roça-os, súbita emoção

como a nossa se recebêcemos o miraculoso encontrão

de um anjo...

Mas nem nós nem os rios sabemos nada disso.

Os rios tresandam óleo e alcatrão

e refletem, em vez de estrelas,

os letreiros das firmas que transportam utilidades.

Que pena me dão os arroios,

os inocentes arroios..."



Mário Quintana

Os poemas - Mário Quintana

Na janela de casa                                                                                                                                                         Foto: Vilma Gama

"Os poemas"


"Os poemas são pássaros que chegam

não se sabe de onde e pousam

no livro que lês.



Quando fechas o livro, eles alçam voo

como de um alçapão.

Eles não têm pouso

nem porto

alimentam-se um instante em cada par de mãos

e partem. 

E olhas, então, essas tuas mãos vazias,

no maravilhoso espanto de saberes

que o alimento deles já estava em ti..."





*Fonte: Quintana, Mário, Esconderijos do tempo, Porto Alegre: L&PM, 1980