Bicarbonato de soda
Súbita, uma angústia...
Ah, que angústia, que náusea do estômago à alma!
Que amigos que tenho tido!
Que vazias de tudo as cidades que tenho percorrido!
Que esterco metafísico os meus propósitos todos!
Uma angústia,
Uma desconsolação da epiderme da alma,
Um deixar cair os braços no sol-pôr do esforço...
Renego.
Renego tudo.
Renego mais do que tudo.
Renego a gládio e fim todos os Deuses e a negação deles.
Mas o que é que me falta, que o sinto faltar-me no estômago e
na circulação do sangue?
Que atordoamento vazio me esfalfa no cérebro?
Devo tomar qualquer coisa ou suicidar-me?
Não: vou existir. Arre! Vou existir.
E-xis-tir...
E-xis-tir...
Meu Deus! Que budismo me esfria no sangue!
Renunciar de portas todas abertas,
Perante a paisagem todas as paisagens,
Sem esperança, em liberdade,
Sem nexo.
Acidente da inconsequência da superfície das coisas,
Monótono mas dorminhoco,
E que brisas quando as portas e as janelas estão todas abertas!
Que verão agradável dos outros!
Dêem-me de beber, que não tenho sede!
Álvaro de Campos
in Fernando Pessoa, O Eu profundo e outros Eus, 19ª Edição, Editora Nova Fronteira, pgs.264/265
Fernando Antônio Nogueira Pessoa nasceu em Lisboa, Portugal, em 13 de junho de 1888 e deixou o planeta em 30 de novembro de 1935.
Participou do Orfismo, primeiro movimento propriamente moderno. Inicia-se em 1915, com a revista Orpheu, que aglutinou jovens de ideias futuristas, entusiasmados com as novidades trazidas pelas mudanças culturais postas em curso com o século XX, defendiam a integração de Portugal no cenário da modernidade europeia. Para tanto, pregavam o inconformismo e punham a atividade poética acima de tudo.
Fonte: Massaud Moisés, A literatura portuguesa através dos textos, Cultrix, 25ª edição revista e aumentada.
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