segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Passeio de Manoel de Barros e Guimarães Rosa

Hoje comemora-se o dia do poeta. Um dia só é pouco, vou continuar comemorando nos próximos 364 também. O poeta Manoel de Barros leva o escritor Guimarães Rosa para um passeio na sua Ilha Linguística...


"Levei o Rosa na beira dos pássaros que fica no 

meio da Ilha Linguística.

Rosa gostava muito de frases em que entrassem

pássaros.



E fez uma na hora:

A tarde está verde no olho das garças.

E completou com Job:

Sabedoria se tira das coisas que não existem.

A tarde verde no olho das garças não existia

mas era fonte do ser.

Era poesia.

Era o néctar do ser.

Rosa gostava muito do corpo fônico das palavras.

Veja a palavra bunda, Manoel

Ela tem um bonito corpo fônico além do

propriamente.

Apresentei-lhe a palavra gravanha.

Por instinto linguístico achou que gravanha seria

um lugar entrançado de espinhos e bem

emprenhado de filhotes de gravatá por baixo.

E era.

O que resta de grandezas para nós são os

desconheceres - completou.

Para enxergar as coisas sem feitio é preciso

não saber nada.

É preciso entrar em estado de árvore.

É preciso entrar em estado de palavra.

Só quem está em estado de palavra pode

enxergar as coisas sem feitio."

Pote Cru está ali na esquina

"O ser que na sociedade é chutado como uma 
barata - cresce de importância  para o meu
olho".

Manoel de Barros, em Retrato do artista quando coisa.

"Pote Cru é meu Pastor. Ele me guiará.

Ele está comprometido de monge.

De tarde deambula no azedal entre torsos de

cachorro, trampas, trapos, panos de regra, couros

de rato ao podre, vísceras de piranhas, baratas

albinas, dálias secas, vergalhos de lagartos,

linguetas de sapatos, aranhas dependuradas em

gotas de orvalho etc. etc.

Pote Cru, ele dormia nas ruínas de um convento.

Foi encontrado em osso.

Ele tinha uma voz de oratórios perdidos."

domingo, 19 de outubro de 2014

Desobjeto artístico



Reflexões sobre a utilidade dos objetos e das pessoas. 

A sociedade nos quer como seres úteis. As pessoas devem possuir somente coisas úteis. 
Para os seres humanos, os outros seres humanos devem ser úteis. Os objetos devem ter utilidade para quem os possui. 
E o que fazer com objetos e pessoas ditos inúteis, aos olhos de uma sociedade capitalista, que deseja utilizar pessoas como objetos úteis, para conseguir o almejado lucro?
O objeto inútil serve para a poesia. Manoel de Barros o chama de desobjeto artístico. 


"Desde criança ele fora prometido para lata

Mas era merecido de águas de pedras de árvores

de pássaros.

Por isso quase alcançou ser mago.

Nos apetrechos de Bernardo, que é o nome dele,

achei um canivete de papel.

Servia para não funcionar: na direção que um

canivete de papel não funciona.

Servia para não picar fumo.

Servia para não cortar unha.

Era bom para água mas obtuso para pedra.

Havia outro estrupício nos guardados de Bernardo.

Tratava-se de um Guindaste para Mosca.

Esse engenho, pra bem funcionar, havia que estar

ligado por um correia aos ventos da manhã.

Funcionava ao sabor dos ventos.

Imitava uma instalação.

Mas penso que seja um desobjeto artístico."



Do livro Retrato do artista quando coisa.

Vinícius de Moraes 101 anos

                                                                                                                           Toquinho, Vinícius e Maria Creuza, em Paris (1972)


Festejado poeta brasileiro. Nasceu no Rio de Janeiro em 19 de outubro de 1913. Fez sua passagem em 09 de julho de 1980. Durante sua estada no planeta Terra navegou também pela música. Faria hoje 101 anos. E para celebrar um soneto.


              
              POÉTICA



"De manhã escureço
De dia tardo
De tarde anoiteço
De noite ardo



A oeste a morte
Contra quem vivo
Do sul cativo
O este é meu norte.



Outros que contem
Passo por passo:
Eu morro ontem



Nasço amanhã
Ando onde há espaço
- Meu tempo é quando."

sábado, 18 de outubro de 2014

O poeta nos convida a olhar para baixo

Imagem da janela do quarto ao olhar para baixo (9.10.14)                                                                                    Foto: Vilma Gama



Não sabemos o que é simplicidade. Somos complicados e tristes. O poeta nos convida a olhar para baixo.
"Aprendo com abelhas do que com aeroplanos."


O olhar de Manoel de Barros dirigi-se aos seres insignificantes, deixados à margem pela sociedade, seres verdadeiramente importantes sob o sol. (Retrato do artista quando coisa)

É um olhar para baixo que eu nasci tendo.

É um olhar para o ser menor, para o 

insignificante que eu me criei tendo.

O ser que na sociedade é chutado como uma

barata - cresce de importância para o meu

olho.

Ainda não entendi por que herdei esse olhar

para baixo.

Sempre imagino que venha de ancestralidades

machucadas.

Fui criado no mato e aprendi a gostar das

coisinhas do chão -

Antes que das coisas celestiais.

Pessoas pertencidas de abandono me comovem:

tanto quanto as soberbas coisas ínfimas."

sexta-feira, 17 de outubro de 2014

Sossego de pedra

Vizinha árvore vista da janela do escritório                                                     Foto: Vilma Gama

A vida é mestra e não devemos ser discípulos rebeldes. A louça deve ser lavada. A tempestade vai passar.

Manoel de Barros, o desencantador de palavras, nos diz em "Retrato do artista quando coisa":

"Sobre meu corpo se deitou a noite (como se
eu fosse um lugar de paina).
Mas eu não sou um lugar de paina.
Quando muito um lugar de espinhos.
Talvez um terreno baldio com insetos dentro.
Na verdade eu nem tenho ainda o sossego de 
uma pedra.
Não tenho os predicados de uma lata.
Nem sou uma pessoa sem ninguém dentro -
feito um osso de gado
Ou um pé de sapato jogado no beco.
Não consegui ainda a solidão de um caixote -
tipo aquele engradado de madeira que o poeta
Francis Ponge fez dele um objeto de poesia.
Não sou sequer uma tapera, Senhor.
Não sou um traste que se preze.
Eu não sou digno de receber no meu corpo os 
orvalhos da manhã."

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

O início da voz tem formato de sol proclamou Manoel de Barros

Parque Villa Lobos                                                                                                                                                     Foto: Vilma Gama
A primavera que vestiu-se de verão nos cumprimenta todas as manhãs. A vida se espalha por todos os cantos.

"Quem se encosta em ser concha é que pode
saber das origens do som.
Ninguém pode fugir do erro que veio.
Poema é lugar onde a gente pode afirmar 
que o delírio é uma sensatez." 

Manoel de Barros -"Retrato do artista quando coisa".