quarta-feira, 29 de outubro de 2014

Abandono


Inexplicável talento com as palavras. Imagens, sentimentos 

que surgem a cada linha. Este é o poeta alvo deste primeiro 

mês do Dizeres Poéticos.




"Quando o mundo abandonar o meu olho.

Quando o meu olho furado de belezas for

esquecido pelo mundo.

Que hei de fazer?

Quando o silêncio que grita de meu olho não

for mais escutado.

Que hei de fazer?

Que hei de fazer se de repente a manhã voltar?

Que hei de fazer?

- Dormir, talvez chorar."


Manoel de Barros - Retrato do artista quando coisa

terça-feira, 28 de outubro de 2014

Casa abandonada: uma reflexão.


A metáfora da casa abandonada nos remete a nós mesmos. Não sejamos casas abandonadas, sem sonhos, sem vida, essa é a mensagem do poeta de primeira grandeza, Manoel de Barros:


"Ao ver o abandono da velha casa: o mato a

crescer nas paredes

Ao ver os desenhos de mofo espalhados nos 

rebocos carcomidos

Ao ver o mato a subir no fogão, nos retratos,

nos armários

E até na bicicleta do menino encostada no 

batente da casa

Ao ver o musgo e os limos a tomar conta do

batente

Ao ver o abandono tão perto de mim que dava

até para lamber

Pensei em puxar o alarme

Mas o alarme não funcionou.

A nossa velha casa ficou para os morcegos e 

os gafanhotos.

E os melões-de-são-caetano que subiram pelas

paredes já estão dando seus frutos vermelhos."


Manoel de Barros - Retrato do artista quando coisa.



segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Ninguém consegue fugir do erro que veio - Manoel de Barros

"Havia no lugar um escorrer azul de água

sobre as pedras do córrego.

(Um escorrimento lírico.)

Andava por lá um homem que fora desde

criança comprometido para lata.

Andava entre rãs e borboletas.

Me impressionou a preferência das andorinhas

por ele.

Era um sujeito esmolambado à feição de ser 

apenas uma coisa.

Era um sujeito esmolambado à feição de ser

apenas um trapo.

Percebi que o homem sofria por dentro de uma

enorme germinação de inércia.

Uma inércia que até contaminava o seu andar

e os seus trajos."


Manoel de Barros - Retrato do artista quando coisa.

domingo, 26 de outubro de 2014

Mostra Internacional de Cinema de São Paulo

Cena de A Fraternidade é Vermelha             Foto: Vilma Gama
Isa e Vilma - Mostra Internacional de Cinema - 22.10.14


                        Av. Paulista vista do Masp                23.10.14                        
Créditos de A Fraternidade é Vermelha - Vão Livre no Masp
Filmes que amei:
  • Charles Chaplin: A Lenda do Século, (2014) dos diretores Frederic Martin e Anne Le Bouch. 


  • A trilogia do diretor polonês  Krzystof Kieslowski (1941-1996)  - A liberdade é azul (1993); A igualdade é branca (1994) e A fraternidade é vermelha (1994).



Filme que gostei:

  • Labyrinthus, (2014), do diretor Douglas Boswell.


Filme que gostei um pouco:
  • Algum lugar belo, (2014), do diretor Albert Kodagolian.


Filmes que não agradaram:
  • Pare ou eu sigo em frente, (2014), da diretora Sophie Fillières.
  • Sonho e silêncio, (2012), do diretor Jaime Rosales.
  • Código desconhecido, (2010), do diretor Michael Haneke.

sábado, 25 de outubro de 2014

Há 41 anos o reggae era assim, poesia emoldurada nas linhas de baixo e batera.





Ensaio gravado em 24 de outubro de 1973 no Estúdio Capitol Records, Hollywood, Califórnia.
Bob Marley and the Wailers estão em turnê e se preparam para o próximo show, que será em San Francisco.
Na estrada desde abril eles passaram por Londres, Edmonton, Leicester, Southampton, Boston, Nova York, Flórida, Kentucky e Denver. 
Destaque para a música Kinky Reggae e para o cabelo do Marley (kinky) antes dos famosos dreadlocks.
Positive vibration!

sexta-feira, 24 de outubro de 2014

O sol

                                                                                                                                                                                  Rio São Francisco
Em uma tarde, alguém observa o sol, sentado em um barranco ao lado de um rio. Como companheiros um caderno, formigas, garças e uma brisa. O ensaio de um abraço desenhado nas frases do caderno e delineado nas patas de uma formiga.


Manoel de Barros (Retrato do artista quando coisa)

"Este é um caderno de haver frases nele.

Um rio passa perto.

Estou sentado no barranco do rio.

Emas no pátio engolem cobras.

Uma formiga está de boca aberta para a tarde.

As quatro patas da formiga tentam abraçar o sol.

Na verdade, não sei se são as patas da formiga

que tentam abraçar o sol

Ou se são minhas frases que desejam fazer esse

trabalho.

Agora uma brisa me garça.

E os arrebóis latejam."





quinta-feira, 23 de outubro de 2014

Um dom

Janela de casa                                                                                                                                                             Foto: Vilma Gama


Exercício de contemplação da beleza. O que pode ser mais bonito que o feitiço das palavras ajeitadas pelo poeta em "Retrato do artista quando coisa". Enfeitiçados leitores... Manoel de Barros:


"Deus disse: Vou ajeitar a você um dom:

Vou pertencer você para uma árvore.

E pertenceu-me.

Escuto o perfume dos rios.

Sei que a voz das águas tem sotaque azul.

Sei botar cílio nos silêncios.

Para encontrar o azul eu uso pássaros.

Só não desejo cair em sensatez.

Não quero a boa razão das coisas.

Quero o feitiço das palavras."

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Os 100 anos de Carlitos

Charles Chaplin: A Lenda do Século



Comentei com uma amiga, ontem, que assisti a um dos melhores filmes da minha vida: "Charles Chaplin: a Lenda do Século", documentário dirigido por Anne Le Bouch e Frédéric Martin. Ri e chorei do início ao fim.
Trata-se da homenagem feita pela Mostra Internacional de Cinema de São Paulo aos 100 anos do personagem mais genial da história do cinema, o Carlitos, de Charles Chaplin, um vagabundo que carrega uma certa ternura no olhar.
A primeira aparição de Carlitos aconteceu há um século, no curta-metragem mudo "Corrida de automóveis para meninos", de 1914, dirigido por Henry Lehrman. A equipe simplesmente invade as filmagens da corrida de automóveis (os avôs do atuais karts). Não havia roteiro. Carlitos atua de improviso e rouba a cena. O público presente, que pretendia assistir a competição, não imaginava estar testemunhando o surgimento do personagem mito do século XX.

Sobre Chaplin:

Charles Spencer Chaplin, ator, diretor e roteirista, nasceu em Walworth, subúrbio de Londres, Inglaterra, em 16 de abril de 1889, fez a passagem aos 88 anos, em 25 de dezembro de 1977, em Vevey, na Suíça. Curioso que, em razão de sua infância pobre, ele detestava o Natal, confidenciou um de seus filhos no documentário, que para mim revelou-se como uma biografia comovente. 

Ainda dá tempo de ver:

Para quem estiver interessado - o documentário "Charles Chaplin: A Lenda do Século" será exibido, em São Paulo, no dia 25, às 14 horas, no Espaço Itaú Frei Caneca e no dia 28, às 19h40, no Espaço Itaú Augusta. 
Dia 1º, às 20 horas, no Parque Ibirapuera, serão exibidos os filmes: "Corrida de automóveis para meninos" (1914) e "O Circo" (1928). 
Pronto, falei. Na minha opinião, imperdível.

terça-feira, 21 de outubro de 2014

A Ilha Linguística

Aceitei o convite do poeta Manoel de Barros para um passeio por sua Ilha Linguística...





















"O lugar onde a gente morava era um Ilha

Linguística, no jargão dos Dialetólogos ( com

perdão da má palavra).

Isto seja: que a gente morava em lugar isolado:

núcleo de dez a vinte pessoas, onde poderia

germinar um idioleto.

Na enchente só entravam batelões e bois de sela

que iam levar mantimentos.

Senão a gente teria que chupar bocaiuva, comer

ovo de ema e tirar mel de pau para sobremesa.

Os anos passavam por longe, ninguém enxergava.

Nas campinas só havia trilheiros de anta.

Quase toda extensão era tomada por

frangos-d'água.

O resto ia no invento.

Pois que inventar aumenta o mundo.

A gene aprendia coisas de sexo vendo os

cachorros emendados, vendo os cavalos nas

éguas e os touros nas vacas.

Camões chamava a isso de 'Venéreo ajuntamento'.

Mas a gente não sabia de Camões e nem de

venéreos.

De novidade tinha por lá uma simpatia para

obter namoro.

Era rabo de lagartixa torrado.

O pó se jogava nos cabelos da moça.

Na primeira poção a moça cede - diziam.

Mas a Ilha Linguística para nós ainda era um

desnome."


Manoel de Barros - Retrato do artista quando coisa

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Passeio de Manoel de Barros e Guimarães Rosa

Hoje comemora-se o dia do poeta. Um dia só é pouco, vou continuar comemorando nos próximos 364 também. O poeta Manoel de Barros leva o escritor Guimarães Rosa para um passeio na sua Ilha Linguística...


"Levei o Rosa na beira dos pássaros que fica no 

meio da Ilha Linguística.

Rosa gostava muito de frases em que entrassem

pássaros.



E fez uma na hora:

A tarde está verde no olho das garças.

E completou com Job:

Sabedoria se tira das coisas que não existem.

A tarde verde no olho das garças não existia

mas era fonte do ser.

Era poesia.

Era o néctar do ser.

Rosa gostava muito do corpo fônico das palavras.

Veja a palavra bunda, Manoel

Ela tem um bonito corpo fônico além do

propriamente.

Apresentei-lhe a palavra gravanha.

Por instinto linguístico achou que gravanha seria

um lugar entrançado de espinhos e bem

emprenhado de filhotes de gravatá por baixo.

E era.

O que resta de grandezas para nós são os

desconheceres - completou.

Para enxergar as coisas sem feitio é preciso

não saber nada.

É preciso entrar em estado de árvore.

É preciso entrar em estado de palavra.

Só quem está em estado de palavra pode

enxergar as coisas sem feitio."

Pote Cru está ali na esquina

"O ser que na sociedade é chutado como uma 
barata - cresce de importância  para o meu
olho".

Manoel de Barros, em Retrato do artista quando coisa.

"Pote Cru é meu Pastor. Ele me guiará.

Ele está comprometido de monge.

De tarde deambula no azedal entre torsos de

cachorro, trampas, trapos, panos de regra, couros

de rato ao podre, vísceras de piranhas, baratas

albinas, dálias secas, vergalhos de lagartos,

linguetas de sapatos, aranhas dependuradas em

gotas de orvalho etc. etc.

Pote Cru, ele dormia nas ruínas de um convento.

Foi encontrado em osso.

Ele tinha uma voz de oratórios perdidos."

domingo, 19 de outubro de 2014

Desobjeto artístico



Reflexões sobre a utilidade dos objetos e das pessoas. 

A sociedade nos quer como seres úteis. As pessoas devem possuir somente coisas úteis. 
Para os seres humanos, os outros seres humanos devem ser úteis. Os objetos devem ter utilidade para quem os possui. 
E o que fazer com objetos e pessoas ditos inúteis, aos olhos de uma sociedade capitalista, que deseja utilizar pessoas como objetos úteis, para conseguir o almejado lucro?
O objeto inútil serve para a poesia. Manoel de Barros o chama de desobjeto artístico. 


"Desde criança ele fora prometido para lata

Mas era merecido de águas de pedras de árvores

de pássaros.

Por isso quase alcançou ser mago.

Nos apetrechos de Bernardo, que é o nome dele,

achei um canivete de papel.

Servia para não funcionar: na direção que um

canivete de papel não funciona.

Servia para não picar fumo.

Servia para não cortar unha.

Era bom para água mas obtuso para pedra.

Havia outro estrupício nos guardados de Bernardo.

Tratava-se de um Guindaste para Mosca.

Esse engenho, pra bem funcionar, havia que estar

ligado por um correia aos ventos da manhã.

Funcionava ao sabor dos ventos.

Imitava uma instalação.

Mas penso que seja um desobjeto artístico."



Do livro Retrato do artista quando coisa.

Vinícius de Moraes 101 anos

                                                                                                                           Toquinho, Vinícius e Maria Creuza, em Paris (1972)


Festejado poeta brasileiro. Nasceu no Rio de Janeiro em 19 de outubro de 1913. Fez sua passagem em 09 de julho de 1980. Durante sua estada no planeta Terra navegou também pela música. Faria hoje 101 anos. E para celebrar um soneto.


              
              POÉTICA



"De manhã escureço
De dia tardo
De tarde anoiteço
De noite ardo



A oeste a morte
Contra quem vivo
Do sul cativo
O este é meu norte.



Outros que contem
Passo por passo:
Eu morro ontem



Nasço amanhã
Ando onde há espaço
- Meu tempo é quando."

sábado, 18 de outubro de 2014

O poeta nos convida a olhar para baixo

Imagem da janela do quarto ao olhar para baixo (9.10.14)                                                                                    Foto: Vilma Gama



Não sabemos o que é simplicidade. Somos complicados e tristes. O poeta nos convida a olhar para baixo.
"Aprendo com abelhas do que com aeroplanos."


O olhar de Manoel de Barros dirigi-se aos seres insignificantes, deixados à margem pela sociedade, seres verdadeiramente importantes sob o sol. (Retrato do artista quando coisa)

É um olhar para baixo que eu nasci tendo.

É um olhar para o ser menor, para o 

insignificante que eu me criei tendo.

O ser que na sociedade é chutado como uma

barata - cresce de importância para o meu

olho.

Ainda não entendi por que herdei esse olhar

para baixo.

Sempre imagino que venha de ancestralidades

machucadas.

Fui criado no mato e aprendi a gostar das

coisinhas do chão -

Antes que das coisas celestiais.

Pessoas pertencidas de abandono me comovem:

tanto quanto as soberbas coisas ínfimas."

sexta-feira, 17 de outubro de 2014

Sossego de pedra

Vizinha árvore vista da janela do escritório                                                     Foto: Vilma Gama

A vida é mestra e não devemos ser discípulos rebeldes. A louça deve ser lavada. A tempestade vai passar.

Manoel de Barros, o desencantador de palavras, nos diz em "Retrato do artista quando coisa":

"Sobre meu corpo se deitou a noite (como se
eu fosse um lugar de paina).
Mas eu não sou um lugar de paina.
Quando muito um lugar de espinhos.
Talvez um terreno baldio com insetos dentro.
Na verdade eu nem tenho ainda o sossego de 
uma pedra.
Não tenho os predicados de uma lata.
Nem sou uma pessoa sem ninguém dentro -
feito um osso de gado
Ou um pé de sapato jogado no beco.
Não consegui ainda a solidão de um caixote -
tipo aquele engradado de madeira que o poeta
Francis Ponge fez dele um objeto de poesia.
Não sou sequer uma tapera, Senhor.
Não sou um traste que se preze.
Eu não sou digno de receber no meu corpo os 
orvalhos da manhã."

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

O início da voz tem formato de sol proclamou Manoel de Barros

Parque Villa Lobos                                                                                                                                                     Foto: Vilma Gama
A primavera que vestiu-se de verão nos cumprimenta todas as manhãs. A vida se espalha por todos os cantos.

"Quem se encosta em ser concha é que pode
saber das origens do som.
Ninguém pode fugir do erro que veio.
Poema é lugar onde a gente pode afirmar 
que o delírio é uma sensatez." 

Manoel de Barros -"Retrato do artista quando coisa".